A COVID 19 E O COLAPSO DA FEDERAÇÃO


Ferreri Sociedade Advogados


A crise de saúde pública surgida com a pandemia causada pela Covid 19 demandou a implementação de medidas e ações governamentais bastante questionáveis quanto à supremacia da Constituição Federal brasileira. O clima de instabilidade entre os poderes é evidente e o desempenho do STF é sobejamente individualizado.

Na concepção jurídica, a Constituição vigente deve ser entendida como o vértice de todo o sistema normativo do Estado, uma vez que é rígida e possui cláusulas pétreas, que se caracterizam por um núcleo de normas intangíveis não passíveis de restrição ou supressão pelo poder reformador, a exemplo do art. 60, § 4º, que elenca como cláusulas imutáveis: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação de poderes e os direitos e garantias individuais (art. 5º).

O sistema federativo é considerado o principal mediador da cooperação entre Estados Federados, buscando a unidade dentro da diversidade, especialmente no tocante à economia, à saúde e à melhoria das condições sociais.

Contudo, desde a sua criação, o federalismo brasileiro extremamente arraigado em sua cultura de centralização tem se mantido na crença de que os Estados devem agir apenas em benefício próprio com uma competitividade extremada, sem levar em consideração a unidade federativa, o que vem causando o colapso do sistema.

O maior exemplo é a atual crise da saúde, que exige atuação descentralizada e equilíbrio entre pretensões e interesses locais, mas, na prática, o que se observa é uma tensão entre os poderes executivo, legislativo e judiciário.

O federalismo constitucional implica na distribuição dos poderes numa mesma base territorial, sendo a repartição de competências essencial para a sua concretização. A competência dos Estados-membros está disciplinada na Constituição Federal, cabendo a cada Estado legislar sobre tudo que não for da competência privativa da União, discriminada no art. 22, ressalvados os assuntos de peculiar interesse que são de competência legislativa municipal (art. 30 da CF). Tal técnica surgiu com a Constituição norte-americana de 1787, que enumerou os poderes da União, deixando aos Estados membros os poderes que não se encontrassem na esfera exclusiva ou privativa de atuação do Estado Federal.

Portanto, a finalidade da repartição de competências é evitar a concentração do poder em um único ente da federação, promovendo o equilíbrio essencial ao sistema federativo de Estado.

Assim como a forma federativa de Estado, a independência e a harmonia entre os Poderes é cláusula pétrea (art. 60, § 4º, III da CF), o que significa dizer que o exercício do poder se faz de forma tripartite, ou seja, cabe ao Poder Legislativo discutir e votar as leis; ao Poder Executivo, executar as leis e, ao Poder Judiciário, o julgamento dos casos concretos segundo as leis.

Dessa forma e, mesmo diante das excepcionalidades provocadas pela crise ora instalada, não é admissível que um Poder cometa abusos e tente se sobrepor a outro, imiscuindo-se em matéria de competência outorgada exclusivamente àquele pela Constituição Federal.

O STF é o guardião da Constituição Federal e o tribunal constitucional competente para assegurar a manutenção do pacto federativo, processando e julgando ações que atacam o vício de inconstitucionalidade (arts. 102 e 103 da CF).

Não existem dúvidas de que, durante a crise de saúde pela Covid-19, torna-se legítima a flexibilização de regras, rotinas, procedimentos, padrões, etc., sem contudo, afrontar o princípio de freios e contrapesos que é fundamental para o funcionamento das instituições e base do Estado Democrático de Direito.

Nesse aspecto, a atuação do STF tem sido lastimável, visto que suas decisões têm caráter político e não jurídico, demonstrando claramente uma posição de enfrentamento às medidas tomadas pelo Poder Executivo.

Exemplo de total incoerência e desrespeito ao papel constitucional moderador da Corte Suprema, foi a decisão do Ministro Alexandre de Moraes quanto à flexibilização do rito de tramitação das Medidas Provisórias (MPs). Fundamentando o decisório no pressuposto da anormalidade das atividades legislativas, o ministro autorizou que fosse simplificado o rito de análise das MPs, dispensando a avaliação da comissão mista, mas não permitiu a suspensão dos prazos de validade das medidas que, segundo a Constituição, devem ser aprovadas pelo Congresso em até 120 dias contados de sua edição pelo presidente da República (art. 62,III).

Observa-se, portanto, que houve uma mesma justificativa (excepcionalidade, genericamente considerada), que gerou duas decisões distintas e, aparentemente, conflituosas.

Em outra decisão monocrática, o ministro Alexandre de Moraes flexibilizou a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) para a União, governadores e prefeitos, sendo que a própria LRF contém dispositivo de exceção e não cabe ao STF decidir sobre essa matéria.

O Ministro Alexandre de Moraes também suspendeu o ato de nomeação do delegado Alexandre Ramagem ao cargo de diretor-geral da Polícia Federal, um dia após a publicação do nome dele no Diário Oficial da União, proferindo decisão monocrática que suspendeu a eficácia do decreto publicado pelo Presidente da República. Indiscutivelmente, o Ministro extrapolou os limites de sua jurisdição deferindo, de imediato, uma medida liminar ao pedido formulado pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT).

A atuação individualizada e de caráter eminentemente político dos ministros do Supremo, associada à inexistência do princípio da colegialidade nas decisões, demonstra prática nada republicana e totalmente antidemocrática.

Na prática, verificamos um contra senso nas condutas dos julgadores do STF, visto que o Plenário da Corte decide uma matéria em determinado sentido e um dos ministros decide monocraticamente em sentido oposto, o que é inaceitável.

Aliás, o ativismo judicial se faz presente no STF, de modo acintoso e clarividente, como se viu na questão da prisão em segunda instância. O Plenário teve que julgar novamente o caso, fixando posição contrária à prisão antes do trânsito em julgado formal da decisão condenatória. Um verdadeiro absurdo jurídico!

Temos um artigo específico na CF (52, II), que confere poderes ao Senado Federal para julgar processar e julgar os Ministros do STF em crime de responsabilidade. A Lei do Impeachment (1.079/50), disciplina os crimes de responsabilidade, seu processo de julgamento, as autoridades que podem ser processadas, quem pode denunciar e no seu art 2º expressa claramente que ministros do STF podem ser processados e condenados por crime de responsabilidade, pelo Senado Federal.

O art. 39, V da referida Lei, define como crime de responsabilidade dos Ministros do Supremo Tribunal Federal “proceder de modo incompatível com a honra dignidade e decoro de suas funções”. À toda evidência, os Ministros da Corte de Justiça do País vêm praticando crime de responsabilidade ao conceder medidas liminares para sustar atos de competência privativa do Executivo, interferindo claramente nas políticas públicas e exacerbando as suas funções constitucionais.

Por sua vez, os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, bem como os governadores dos Estados, se apresentam como interlocutores na construção de saídas para a crise, buscando assumir o protagonismo das reformas e das medidas aparentemente necessárias ao país, mas evidentemente contrárias ao bem comum, em clara disputa política com o Poder Executivo.

Isso se comprova pela visível prevaricação do legislativo ao deixar de apreciar, a tempo, as medidas provisórias editadas pelo Poder Executivo, as quais são inarredavelmente urgentes e relevantes, elegendo pautas legislativas próprias e incoerentes com a crise que vivemos.

Acrescente-se, ainda, que não apenas a competência entre os Poderes está sendo exercida de forma a afrontar a lei, como também, a competência entre as três esferas políticas (União, Estados e Municípios), que são, conforme prevê a Carta Magna, autônomas e independentes (art. 18 da CF).

É bom lembrar que, tanto a assistência social quanto a assistência à saúde, são de competência comum das três entidades políticas da Federação Brasileira. Mesmo assim, os Estados e Municípios estão legislando por decretos e portarias, sem respeitar as normas da Lei Federal nº 13.979/20 (Lei da Pandemia), que rege especificamente as atividades de combate ao coronavírus.

Saliente-se que essa lei foi editada pela União, exercendo a competência exclusiva que lhe é conferida pelo art. 21, inciso XVIII, ou seja, a faculdade de planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações.

Entrementes, governadores e prefeitos estão impondo restrições que vão muito além daquelas autorizadas pela lei que rege a matéria, atentando contra a inviolabilidade do sigilo de comunicações, o direito de ir e vir, o direito de propriedade, entre outros.

O conflito entre a hierarquia das leis e a prevalência do interesse público, deveria ser resolvido pelo STF, na condição de guardião da Constituição, mas a persistência dos Ministros no individualismo e na interferência em aspectos políticos, mitigam o Estado Democrático de Direito, gerando incertezas e insegurança jurídica.

Por fim, para amenizar os efeitos da pandemia, é necessário que o Brasil percorra novos caminhos em busca da estabilização e da supremacia da Constituição.

Para isto, impõe-se a ampliação, por meio de reforma à Constituição, do rol de competências entre os entes federativos, abarcando as novas tecnologias; os novos direitos fundamentais; o patrimônio genético; as redes sociais e as telecomunicações.

Deve ainda, ser fortemente debatida em nosso país, a graduação das competências hoje existentes entre os entes federativos. Para deixar de ser ilusória e utópica, a federação brasileira deve estabelecer diferentes graus de autonomia, de acordo com a substância fática de cada ente federativo, ou seja, quanto mais condições governamentais, econômicas e sociais ele tiver, mais competências ele assumirá.

Impõe-se ainda, a reorganização dos poderes em nível constitucional, reduzindo-se as competências da União, em um grande acerto político do pacto federativo, no que ele tem de mais característico, ou seja, a possibilidade de serem firmados acordos administrativos, convênios e consórcios entre os Estados, para solucionar questões de interesses comuns sejam regionais ou locais.

Profa. Dra. Janice Helena Ferreri – Mestre e Doutora em Direito Constitucional pela PUCSP Especialista em Direito Processual Civil pela USF – Sócia Fundadora do Escritório Ferreri Sociedade Advogados – Autora do Livro: Um Novo Pacto Federativo para o Brasil.

1 responder
  1. Marco
    Marco says:

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    Responder

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