Tipificação Penal no contexto da Pandemia

TIPIFICAÇÃO PENAL NO CONTEXTO DA PANDEMIA DA COVID-19

Ana Paula Lopes Herrera de Faria. Graduada em Direito pelo Centro Universitário FMU (2004), pós-graduanda em Direito Corporativo e Compliance pela Escola Paulista de Direito – EPD (2020-2021), com cursos de extensão universitária em Advocacia Previdenciária (2005) e Prática Processual Trabalhista (2015), ambos pela Escola Superior de Advocacia da OAB/SP (ESA/SP). Advogada associada do Ferreri Sociedade de Advogados.


A pandemia causada pela COVID-19 trouxe à luz interessante debate acerca da tipificação penal que tem sido conferida pelos órgãos de persecução e julgamento a determinadas condutas praticadas na vigência do estado de calamidade pública.

Com a edição da Lei Excepcional nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que predominantemente não traz em si aspectos que envolvem diretamente o direito penal, importantes normas penais em branco foram complementadas, possibilitando a subsunção de certas práticas a tipos penais até então “adormecidos”, bem como levantando questionamentos acerca da constitucionalidade de alguns de seus dispositivos.

O artigo 2º da Lei nº 13.979/20, por exemplo, trouxe os conceitos de isolamento e quarentena, bem como a determinação de que as pessoas procedam às mencionadas condutas, de modo que o descumprimento enseja, em tese, o cometimento do crime do artigo 268 do Código Penal, a saber, infração de medida sanitária preventiva.

Por sua vez, o inciso III do artigo 3º da Lei 13.979/20 previu a possibilidade de as autoridades determinarem, no âmbito de suas respectivas competências, dentre outras medidas, a realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação, medidas profiláticas e tratamentos médicos específicos.

Trazendo uma conotação penal a uma lei que originariamente não possui tal natureza, poderia o indivíduo ser obrigado a se submeter à realização desses procedimentos? Seriam tais medidas constitucionais face ao princípio do nemo tenetur se detegere ou direito à não autoincriminação?

Considerando-se a excepcionalidade do momento atual, a vedação à autoincriminação deve ser sopesada em relação à questão da saúde pública. Assim, o resultado positivo do exame compulsório para a COVID-19, aplicado no indivíduo que descumpre as medidas de isolamento ou quarentena, indubitavelmente trará consigo desdobramentos penais, haja vista a necessidade de dar preponderância ao interesse coletivo em detrimento ao direito individual.

Em razão da gravidade das atuais circunstâncias a maior parte das pessoas tem defendido a compulsoriedade do exame médico. Inclusive os órgãos investigativos e julgadores têm sido muito mais tendenciosos no sentido de admitir sua constitucionalidade.

No entanto, entendemos que deve haver bastante cautela na adoção irrestrita da tese que preconiza a prevalência do interesse coletivo sobre o particular, porquanto pode vir a ensejar relevantes precedentes, por exemplo, em relação aos crimes de trânsito cometidos sob o estado de embriaguez, cabendo sempre a ressalva de estarmos diante de um Direito Penal excepcional.

A orientação que temos visto, de modo geral, é a capitulação em tipos penais de forma muito mais rigorosa, justamente porque é preciso haver ações mais enérgicas e extremas, reitere-se, durante o período extraordinário de calamidade.

Delitos, até então, com pouca ou nenhuma aplicabilidade prática vêm recebendo especial destaque, tais como os crimes de perigo dos artigos 131 e 132, e os crimes contra a saúde pública dos artigos 267 e 268, todos do Código Penal, o que tem gerado uma série de dúvidas acerca da correta tipificação penal das condutas praticadas.

Exemplificando, qual seria a correta capitulação do procedimento daquele que, sabendo-se infectado, deliberadamente pratica atos capazes de contagiar outras pessoas com a COVID-19?

O artigo 131 do Código Penal traz em si o elemento subjetivo da vontade deliberada de realizar comportamento capaz de contagiar pessoa certa e determinada, não havendo no artigo 132 esta finalidade específica, inobstante a geração do risco.

Deste modo, a prática de atos com a finalidade de transmitir moléstia grave de que está contaminado ou de expor a perigo direto ou iminente uma coletividade indeterminada de pessoas não se amolda aos tipos penais de periclitação da vida e da saúde.

Atitudes que coloquem em risco uma pluralidade não especificada de vítimas, tais como desrespeitar a quarentena, promover ou participar de passeatas, festas e aglomerações, podem vir a configurar crime contra a saúde pública. Entretanto, não o do artigo 267 do Código Penal.

O problema de capitular as condutas acima descritas no crime do artigo 267 reside no fato de que, no Direito Penal, não se admite interpretação extensiva em desfavor do acusado. Assim, uma vez que o núcleo do tipo pressupõe causar epidemia, não há como fazer nele incidir o indivíduo que colabora com a disseminação de uma pandemia já causada, conforme entendimento do Prof. Fábio Guaragni[1].

Melhor enquadramento do delito seria no tipo do artigo 268 do Código Penal, na medida em que as práticas descritas são, em última análise, verdadeiras infrações às recentes determinações emanadas do poder público, destinadas a impedir a propagação de doença contagiosa, na hipótese, a infecção pela COVID-19.

Importa destacar, ainda, outras condutas que se tornaram relativamente comuns desde que teve início a pandemia do novo coronavírus, assim como os respectivos questionamentos surgidos em decorrência da natural dificuldade em proceder às suas corretas capitulações em tipos penais que, até então, habitavam apenas os códigos e as doutrinas.

Assim, pergunta-se: o indivíduo que subtrai material de socorro durante o estado de calamidade, responde isoladamente pelo delito previsto no artigo 257 do Código Penal ou por este em concurso com o artigo 155? O entendimento do Prof. Rogério Sanches é de que prevalece a subsunção da conduta apenas ao artigo 257, sob pena de indisfarçável bis in idem[2].

Trata-se da simples aplicação do princípio da especialidade, segundo o qual prevalece a norma que reúne todos os elementos da outra, mais alguns elementos especializantes; em outras palavras, o tipo penal especial prevalece sobre o geral.

Quanto àquele que majora arbitrariamente o lucro sobre produtos absolutamente imprescindíveis no estado de pandemia, tais como álcool em gel e máscaras, esclarece o Prof. Sandro Caldeira que pode vir a incidir nas penas cominadas aos crimes contra a economia popular, quais sejam, os dos artigos 3º, VI e 4º, “b”, da Lei nº 1.521/51, sendo de suma importância apurar o real causador do aumento arbitrário, que não necessariamente é o comerciante[3].

Casos como o do médico que anunciou medicamento com a suposta promessa de imunidade de leão contra o coronavírus[4] também têm sido observados com cada vez mais frequência, sendo comumente enquadrados no crime de charlatanismo do artigo 283, do Código Penal, cabendo, aqui, um breve esclarecimento no sentido da impossibilidade de a conduta ser classificada como curandeirismo em razão da falta de habitualidade, elemento constitutivo do crime do artigo 284.

A falsificação de álcool em gel tem, igualmente, ocupado importante espaço nos noticiários, caracterizando a conduta tipificada no artigo 273 do Código Penal, configurando, ainda, crime hediondo, tamanha a gravidade do delito. Note-se que a severa punição prevista para este delito, pena mínima de 10 a 15 anos de reclusão, corresponde ao dobro da penalidade cominada ao tráfico de drogas, se aproximando, inclusive, da pena prevista para o homicídio qualificado, significando quase o dobro da pena cominada ao homicídio simples.

Diante disso exsurge a questão: a gravidade da capitulação desse crime violaria a intervenção mínima, a razoabilidade, a proporcionalidade e a proibição do excesso? Segundo posicionamento do Prof. Rogério Sanches, no caput, não, mas no § 1º, “b”, sim, porque pune com as mesmas penas aquele que não corrompeu o medicamento ou produto terapêutico, mas simplesmente o vendeu sem autorização da vigilância sanitária, transformando uma infração meramente administrativa em infração penal, gerando uma hipertrofia da punição[5].

Na análise dos delitos sob a ótica do novo coronavírus, não podemos deixar fazer menção ao crime de lesão corporal do artigo 129, do Código Penal, assim ilustrado pelo Prof. Guilherme de Souza Nucci[6]:

(…) o delito de lesão corporal pode ser aplicado quando a transmissão do vírus se der, de forma dolosa, em ambiente restrito, onde há apenas duas pessoas.

Uma delas, contaminada, espirra no rosto da outra, visando à transmissão do vírus; resultando em infecção, haverá lesão corporal simples (não ocorrendo o contágio, pode-se até sustentar a tentativa de lesão, que, embora difícil de ser comprovada, é possível).

Se a vítima for idosa, pode chegar ao perigo de vida ou mesmo à morte, ingressando-se nas formas qualificadas da infração penal. Cuida-se de um crime material e de dano, não se aplicando os delitos contra a saúde pública, mas a infração penal contra a incolumidade física.

Por fim, vale trazer a lume breves apontamentos acerca da incidência da circunstância agravante do artigo 61, II, “j”, do Código Penal, tema que tem sido objeto de acalorados debates entre aqueles que defendem sua aplicação irrestrita a todo e qualquer crime cometido durante a pandemia e os que entendem que a agravante deve incidir somente nas hipóteses em que o indivíduo deliberadamente se vale do momento de calamidade pública para obter facilidades ao cometimento do delito.

O texto legal não traz em si o elemento subjetivo consistente na vontade do agente em cometer crime valendo-se do estado de calamidade pública. Entretanto, há que se ponderar que se não houver nexo causal entre a vontade do agente em praticar o delito aproveitando-se do momento calamitoso, qualquer crime cometido durante a pandemia, e enquanto ela perdurasse, sofreria indiscriminadamente a incidência da agravante, o que, nas palavras do Prof. Eduardo Fontes, não faria sentido[7].

Por outro lado, faz-se necessário ponderar que a ideia do legislador ao criar a agravante parece ter sido no sentido de que, dentro desses horizontes de epidemia, incêndio, catástrofes ou calamidades, existiria uma espécie de redução geral da segurança, ou uma fragilização geral dos destinatários da proteção penal.

Assim, ressalvadas as hipóteses em que o tipo penal já contempla as mencionadas circunstâncias excepcionais, seria perfeitamente possível fazer uso da agravante, ainda que o fato não tenha relação direta com a pandemia, posto que potencializado por força das atuais conjunturas, representando uma verdadeira soma de sofrimentos à vítima[8].

Por certo, não pretendemos esgotar, aqui, todas as questões atinentes à adequada capitulação dos delitos praticados durante a pandemia da COVID-19, até porque a jurisprudência acerca do assunto se encontra em plena fase de construção, restando aos operadores do direito acompanhar a evolução e os desdobramentos dos casos concretos, bem como contribuir para a formação de teses sólidas, tudo com vistas a resguardar os direitos e reforçar os deveres dos jurisdicionados.


[1] Entendimento declarado durante mesa de debates realizada aos 19/05/2020, no 15º Congresso Jurídico Online Multidisciplinar com o Tema: O Coronavírus e o Direito Decorrente, promovida pela Faculdade CERS.

[2] Posicionamento exposto no debate realizado em 14/4/2020, durante a Live “Coronavírus: crimes mais comuns ocorridos durante a pandemia”, promovida pela Faculdade CERS.

[3] Posição exposta no debate realizado em 14/4/2020, durante a Live “Coronavírus: crimes mais comuns ocorridos durante a pandemia”, promovida pela Faculdade CERS.

[4] Matéria veiculada em https://g1.globo.com/df/distrito federal/noticia/2020/04/01/medico-do-df-e-investigado-apos-anunciar-medicamento-que-promete-imunidade-de-leao-contra-coronavirus.ghtml, acessada em 15/7/2020.

[5] Posição exposta no debate realizado em 14/4/2020, durante a Live “Coronavírus: crimes mais comuns ocorridos durante a pandemia”, promovida pela Faculdade CERS.

[6] Artigo “A pandemia do coronavírus e a aplicação da lei penal”, disponível através do link https://guilhermedesouzanucci.jusbrasil.com.br/artigos/823696891/a-pandemia-do-coronavirus-e-a-aplicacao-da-lei-penal, acessado em 17/7/2020.

[7] Entendimento declarado durante mesa de debates realizada aos 19/05/2020, no 15º Congresso Jurídico Online Multidisciplinar com o Tema: O Coronavírus e o Direito Decorrente, promovida pela Faculdade CERS, apoiado pelo Prof. Renee Souza.

[8] Entendimento comungado pelos Profs. Fábio Guaragni e Américo Bedê Jr. durante a mesa de debates realizada aos 19/05/2020, no 15º Congresso Jurídico Online Multidisciplinar com o Tema: O Coronavírus e o Direito Decorrente, promovida pela Faculdade CERS.

Ana Paula Lopes Herrera de Faria. Graduada em Direito pelo Centro Universitário FMU (2004), pós-graduanda em Direito Corporativo e Compliance pela Escola Paulista de Direito – EPD (2020-2021), com cursos de extensão universitária em Advocacia Previdenciária (2005) e Prática Processual Trabalhista (2015), ambos pela Escola Superior de Advocacia da OAB/SP (ESA/SP). Advogada associada do Ferreri Sociedade de Advogados.

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