DIREITO CONTRATUAL EM TEMPOS DE CRISE: REFLEXOS DO CORONAVÍRUS

Ferreri Sociedade de Advogados.

Quando a Covid-19 foi descoberta no final de 2019, todas as preocupações da humanidade convergiram para um único dilema: “como enfrentar o Coronavírus?”.

O que a maioria das pessoas não imaginava é que, em pleno século XXI, estaríamos tão vulneráveis quanto nossos antepassados no início do século XX; e, menos ainda, que estaríamos diante não apenas de uma crise envolvendo a saúde, como também em meio a uma imensa crise financeira.

No Brasil, o Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, reconheceu a ocorrência do estado de calamidade pública, com efeitos até 31 de dezembro de 2020, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020.

Na sequência, Estados e Municípios também emitiram decretos de calamidade pública, instituindo o distanciamento social e determinando a suspensão de diversas atividades empresariais, como forma de impedir a propagação da doença.

As consequências dessas medidas se alastraram para todas as áreas da economia e, de um dia para o outro, indivíduos e empresas se viram desprovidos de recursos financeiros e impossibilitados de cumprir suas obrigações.

Com o intuito de minimizar os efeitos nefastos dessas medidas, o Governo Federal decretou a moratória das empresas sob o regime do Simples, prorrogou o prazo de pagamento do FGTS; desonerou a importação de equipamentos médico-hospitalares; zerou o IPI na importação de bens e produtos necessários ao combate ao coronavírus; reduziu as contribuições do Sistema S (as alíquotas foram, em geral, reduzidas pela metade, de modo que as contribuições para o SESI foram reduzidas de 1,5% para 0,75%, do SENAI de 1% para 0,5%, do SESCOOP de 2,5% para 1,25%, e assim por diante).

Posteriormente, houve a prorrogação do prazo de pagamento do PIS-COFINS; e a concessão de um auxílio de R$600,00 aos trabalhadores informais e aos hipossuficientes em geral; foi ampliado o número de beneficiários do Bolsa Família; autorizada a antecipação do pagamento do 13º salário e do saque do FGTS; e editada a MP nº 936/2020, que implantou o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, e a MP nº 944/2020, que estabeleceu o financiamento público e privado da folha salarial.

Todavia, as medidas emergenciais não foram suficientes para impedir o fechamento de empresas e a demissão de milhares de trabalhadores em todo o país.

Nesse cenário, todos os contratos assinados antes da decretação do estado de calamidade foram postos em risco.

Em virtude disso, alguns juristas passaram a defender a incidência do artigo 393 do Código Civil, que trata do caso fortuito e da força maior, com o intuito de justificar a impossibilidade de cumprimento da obrigação contratual.

Ocorre que, a existência da pandemia não autoriza, por si só, a aplicação desses institutos, pois estamos diante de uma situação passageira, que não justifica a resolução do contrato.

As únicas hipóteses em que cabem a resolução do contrato e o retorno das partes ao status quo ante referem-se às questões de obrigação de fazer.

Nesse sentido, vale trazer à colação um trecho do artigo recentemente publicado pelo Prof. José Fernando Simão, no qual discorre brilhantemente sobre o tema:

Em termos de efeitos, em ocorrendo o caso fortuito ou de força maior, a lei autoriza:

1) A resolução do contrato, seu desfazimento, sua extinção, com efeitos ex nunc, ou seja, do momento em que se declarou a a resolução para frente.

2) Irresponsabilidade do devedor pelos prejuízos causados ao credor.

O fato necessário torna a prestação impossível de ser cumprida. Nos exemplos de manual, há uma greve geral em São Paulo que impede a locomoção de pessoas. O devedor não consegue chegar no domicílio do credor para efetuar o pagamento. Há uma impossibilidade física de se levar o cavalo ao credor quando o trânsito colapsa.

Duas questões merecem reflexão. A primeira é que se a “impossibilidade” é passageira, a força maior não tem aplicação. É fato que vivemos uma pandemia passageira. Conforme leciona Pontes de Miranda,

“Se é de prever-se que a impossibilidade pode passar, a extinção da dívida não se dá. Enquanto tal mudança é de esperar-se, de jeito que se consiga a finalidade do negócio jurídico, nem incorre em mora o devedor, nem, a fortiori, se extingue a dívida. Mas, ainda aí, é de advertir-se que a duração da impossibilidade passageira, ou de se supor passageira, pode ser tal que se tenha de considerar ofendida a finalidade, dando ensejo a direito de resolução”5.

Se a prestação é exequível, porém de maneira mais custosa ao devedor, não estamos diante da força maior em seu sentido clássico. Isso porque há uma figura específica para resolver exatamente essa situação. Há categoria própria.

Não se desconhece a leitura de parte da doutrina, em tempos em que a o Código Civil de 1916 não cuidava da figura da revisão contratual, nem da onerosidade excessiva. É por isso que a doutrina antiga ainda apegada ao BGB em sua versão original (a partir de Hedemann), entendia que será impossível a prestação “cujo cumprimento exija do devedor esforço extraordinário e injustificável”6.

Há uma pandemia e, por ato do Poder Executivo, os Shoppings Centers fecham. Não há público, não há faturamento. O shopping center cobra dos lojistas a componente fixa do aluguel. Há uma pandemia e o comércio de rua, por ato do Estado, fecha suas portas. Não há público e o lojista precisa pagar o aluguel. A pergunta que cabe em ambos os casos é: há uma impossibilidade de se cumprir a prestação que é pecuniária (dar dinheiro)?

A resposta é obviamente negativa. Aliás o jornal Valor econômico de hoje, dia 27.03.2020, afirma que “caixa alto ajuda grandes empresas a enfrentar a crise”. Segundo o jornal, 85% das companhias que tem ação na bolsa conseguem honrar seus compromissos trabalhistas mesmo que ficassem 12 meses sem faturar. E metade das empresas restantes (15%, portanto) suportariam 6 meses. São 97 empresas não financeiras que fazem parte do IBOVESPA e do Índice Small Caps7.

Da mesma forma, a ausência de passageiros em aviões. Não há impedimento para o transporte ocorrer, mas há custos altos em se transportar poucos passageiros.

E ainda que as empresas, sem faturamento, não tivessem dinheiro para pagar o aluguel, força maior é um conceito que não se aplica aos exemplos dados.

Há hipóteses em que a força maior resulta da pandemia? Há e são relacionadas à prestação de fazer. A empreitada não pode prosseguir pela pandemia. Não se podem reunir os pedreiros e demais funcionários em tempo de quarentena. A prestação de serviços de limpeza para porque o prefeito de certa cidade decreta quarentena que efetivamente proíbe o cidadão de sair de sua casa.

Da mesma forma, os shows, espetáculos, festas de casamento que foram cancelados pelas restrições da pandemia. Nessas hipóteses, o contrato se resolve e as partes voltam ao estado anterior, sem se falar em perdas e danos.

Se possível for o serviço remoto, por home office, o serviço deve ser prestado em tempos de pandemia. É o que ocorre com advogados, contadores etc. Sendo possível o trabalho remoto (e muitas vezes o é), não há que se alegar impossibilidade da prestação porque o devedor não pode sair de casa. (g. nossos)[1]

Nada obstante, o que fazer diante da crise e da inexistência de recursos financeiros?

O Direito contratual contemporâneo já prevê que o fim precípuo do contrato é o “bom adimplemento”. E este importa na manutenção da boa-fé, da razoabilidade e do bom senso, nas negociações excepcionais advindas com a crise da Covid 19.

O Prof. Flávio Tartuce defende a relativização da pacta sun servanda mediante a aplicação da teoria do adimplemento substancial, baseada nos princípios da boa-fé e da função social do contrato[2].

Essa teoria surgiu no Direito Inglês sob o termo substancial performance, no caso Boone v. Eyre, de 1779; e foi oficialmente introduzida no Brasil durante à IV Jornada de Direito Civil, evento promovido pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça em 2006, na qual aprovou-se o Enunciado n. 361 CJF/STJ, estabelecendo que:

“O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475”.

A teoria do adimplemento substancial tem sido aplicada pelos tribunais pátrios “como instrumento de equidade colocado à disposição do intérprete para que nas hipóteses em que a extinção da obrigação esteja muito próxima do fim, exclua-se a possibilidade de resolução do contrato”.[3]

O entendimento é de que é cabível apenas a cobrança do saldo residual do contrato ou de perdas e danos. A análise, portanto, é qualitativa e não apenas quantitativa, ou seja, se o devedor é contumaz, se há boa-fé, etc.[4]

Alguns autores defendem que a referida teoria poderia ser aplicada, inclusive, aos negócios jurídicos reais ou ao direito de família. No entanto, o Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou no sentido de que não se aplica à alienação fiduciária e garantia de bem imóvel (REsp 1.622.555/MG), e nem à execução de alimentos (HC 439.973/MG).

Contudo, a Teoria do Adimplemento Substancial vem sendo recorrentemente utilizada nos casos que envolvem contratos de locação, conforme se observa no julgado a seguir destacado:

CIVIL E PROCESSO CIVIL. RESCISÃO DE CONTRATO. PROMESSA DE COMPRA E VENDA E LOCAÇÃO DE IMÓVEL. RESCISÃO CONTRATUAL E RETOMADA DO IMÓVEL. IMPOSSIBILIDADE. TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL DO CONTRATO. APLICAÇÃO. 1. Aplica-se a teoria do adimplemento substancial do contrato quando o devedor adimpliu grande parte do seu valor total e as consequências do seu desfazimento se mostram mais gravosas e prejudiciais ao equilíbrio dos negócios. 2. Recurso desprovido.[5]

Outra solução que vem sendo fortemente defendida é a aplicação da teoria da imprevisão, disciplinada nos artigos 317, 478, 479 e 480 do Código Civil:

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.

Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.

Abstrai-se desses dispositivos que a revisão contratual depende, pois, da existência de “fato superveniente, diante de uma imprevisibilidade somada a uma onerosidade excessiva”[6].

Essa teoria já vem sendo adotada pelos Tribunais nos casos que envolvem contratos de locação comercial afetados pelo distanciamento social, conforme se observa abaixo:

[…] Necessário que se demonstre alteração da base objetiva do contrato, em razão de circunstância excepcional, do momento de sua celebração para o de execução, consistente no pagamento das prestações.

Este é o caso dos autos, na medida em que a pandemia instaurada pela disseminação rápida e global de vírus até então não circulante entre os seres humanos acabou por levar as autoridades públicas a concretizar medidas altamente restritivas de desenvolvimento de atividades econômicas, a fim de garantir a diminuição drástica de circulação das pessoas e dos contatos sociais.

Tal situação ocasionou a queda abrupta nos rendimentos da autora, tornando a prestação dos alugueres nos valores originalmente contratados excessivamente prejudicial a sua saúde financeira e econômica, com risco de levá-la à quebra.

Desse modo, cabível a revisão episódica dos alugueres, com a finalidade de assegurar a manutenção da base objetiva, para ambas as partes, gerando o menor prejuízo possível a elas, dentro das condições de mercado existentes.

Observo que a temática dos aluguéis está sendo levada em alta quantidade ao Poder Judiciário, gerando até decisões de suspensão de pagamento. Ocorre que, no caso em tela, os requeridos são pessoas naturais, presumindo-se, portanto, que a suspensão do pagamento lhes transferirá todo o ônus financeiro do qual a autora busca se livrar. (…)

Ora, considerado o evidente prejuízo da parte autora, mas sem descuidar do prejuízo, em igual medida, para parte ré, que também precisa dos locativos para seu sustento, razoável a redução do locativo, a fim de que corresponda, durante o período de pandemia, à metade do valor normal, a saber, R$ 8.867, 78..

Ante o exposto, defiro a tutela de urgência, para reduzir o valor do aluguel, desta data e até o fim da pandemia COVID-19, ou o julgamento do feito, o que sobrevier primeiro, para R$ 8.867, 78.[7]

Verifica-se ainda que, apesar de ser necessária a aplicação da teoria da imprevisão nos casos análogos ao citado, não se pode impor todo o ônus financeiro ao locador que, muitas vezes, depende desses recebimentos para sua sobrevivência.

Conclui-se, portanto, que eventuais inadimplementos contratuais, surgidos em razão da crise econômica vivenciada, devem ser flexibilizados e devidamente interpretados pelo Poder Judiciário, de modo a preservar a boa-fé como valor jurídico transcendente, tornando possível o equilíbrio contratual entre as partes, tal como o Direito prevê.


[1] Simão, José Fernando. “O contrato nos tempos da COVID-19”. Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2020/4/8CF00E104BC035_covid.pdf, acessado em 22/06/2020.

[2] Posição exposta durante palestra proferida em 21/05/2020, durante o 15º Congresso Jurídico Online Multidisciplinar o Coronavírus e do Direito Decorrente, promovida pelo CERS.

[3] RECURSO ESPECIAL Nº 1.622.555 – MG (2015⁄0279732-8).

[4] Palestra proferida em 21/05/2020, durante o 15º Congresso Jurídico Online Multidisciplinar o Coronavírus e do Direito Decorrente, promovida pelo CERS.

[5] TJ-DF – APC: 20100710104080, Relator: Desembargador não cadastrado, Data de Julgamento: 17/07/2013, Órgão não cadastrado, Data de Publicação: Publicado no DJE : 06/08/2013 . Pág.: 303.

[6] TARTUCE, Flávio. “Direito civil, v. 2: direitos das obrigações e responsabilidade civil”, 8ª ed.,Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método; 2013. p. 129

[7] TJ-SP – AI: 21037534120208260000 SP 2103753-41.2020.8.26.0000, Relator: Vianna Cotrim, Data de Julgamento: 15/06/2020, 26ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 15/06/2020.

Sabrina Zamana dos Santos – Mestre em Direito Constitucional pela PUCSP, especialista em Direito Civil e Processual Civil pela UNIFAAT, e pós-graduanda em Direito Tributário pela PUCMG – Advogada sócia do Ferreri Sociedade de Advogados.

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